Elizabeth Bishop, Lya Luft, Para Sempre Alice, Uma Arte

A Arte de Perder

Ontem à noite me dei ao luxo de assistir a um excelente filme na sala especial do cinema do Shopping Ponteio. Cinqüenta lugares, com cadeiras muito confortáveis, apoio para os pés e um cardápio especial para os clientes. Devo confessar que fiquei mal acostumada, pois foi realmente muito agradável assistir ao filme “Para Sempre Alice”  neste local privilegiado (e caro).

Deixando a sala de lado, devo reconhecer que o filme assistido e indicado por uma prima querida que escreveu uma excelente crítica (http://altamenteacido.com.br/review/critica-para-sempre-alice/), valeu muitíssimo a pena. Julianne Moore está realmente espetacular na sua atuação, no papel de uma professora de linguística bem sucedida, que é diagnosticada com um caso precoce de Alzheimer. A sua atuação lhe rendeu um Oscar muito merecido de melhor atriz. É um filme muito triste, pois retrata uma doença que realmente nos faz nos perder de nós mesmos, por mais belas que sejam as histórias que tenhamos construído na vida. Por outro lado, a película capta com tamanha sutileza a perda em todos os âmbitos que o Alzheimer impõe, envolvendo o espectador ( pelo menos essa que vos fala) durante todo o longa.

Este filme me lembrou de um texto de Lya Luft que li há muito tempo na Veja (sim, eu já li Veja), em que esta escritora escreveu sobre sua mãe, que acabara de falecer em decorrência do Alzheimer. A força das palavras é incrível, pois nunca me esqueci da dor que a autora tão bem descrevera, relacionada à mais simples e bela das saudades, mas que representa toda a grandiosidade devastadora que a ausência da pessoa que nos gerou deixa, a de nunca mais dizer a palavra “mãe”. Lya tão bem escreve neste texto a sua sensação:

“Pois diante dessa figura estranha, poderosa, arquetípica, primordial, da mulher que nos pariu, todos estacamos à espera de reconhecimento, abrigo e colo”.

Nunca desconhecimento.

A doença em questão nos tira, não só as belas senhoras que com um simples olhar conseguem nos fazer virar do avesso, mas também o reconhecimento e a identidade de sabermos quem somos ao nos olharmos de frente para a janela da nossa história. Transcrevo o último parágrafo do texto, que penso concluir o que tão brevemente estou tentando traduzir:

“A esta altura da vida, sempre em crescimento, com as lutas pessoais e humanas, as contemplações, glórias e derrotas, fênix da própria existência como todos somos, me punge a súbita consciência de que nunca mais, nem diante de uma velhinha que já não me reconhece, poderei dizer: Mãe.”

Se tiverem um tempo, não deixem de ler esse lindo texto (http://veja.abril.com.br/120105/ponto_de_vista.html).

Hoje, além de divagar sobre essa doença maldita, que parece existir para nos lembrar de como as memórias são preciosas, eu vim falar de outra pessoa a que este filme me remeteu. Em uma linda cena em que Alice (Julianne Moore), a personagem principal, faz um discurso sobre a sua experiência com a doença, ela cita a poetisa americana do século XX Elizabeth Bishop, que escreveu uma lindíssima poesia sobre a arte da perda. Há pouco tempo, antes de assistir a este filme, cruzei os caminhos de Bishop, com esta mesma poesia impressa em minhas mãos.

Esta escritora norte americana nasceu em Massachusetts, em 1911 e faleceu em 1979. Bishop viveu cerca de 20 anos no Brasil, onde produziu grande parte de sua obra. Durante a sua estada, teve um relacionamento amoroso com a arquiteta carioca Maria Carlota de Macedo Soares (1910-67), entre 1951 e 1967. Lota, como esta era chamada, foi quem projetou o Parque do Flamengo, localizado no Rio de Janeiro.  O relacionamento de aproximadamente 15 anos, teve um fim abalado pela instabilidade emocional de Elizabeth e a obsessão de Carlota pelo seu projeto arquitetônico, que terminou com o suicídio de Lota.

A história pode ser lida no livro “Flores Raras e Banalíssimas”, ou assistido no filme “Flores Raras” de Bruno Barreto. Gostei do filme (não li o livro), embora não o considere nenhuma obra prima. Foi interessante conhecer esse pedaço de história, tão importante para a poesia e a arquitetura brasileira.

Elizabeth Bishop teve sua vida marcada por perdas, como de seu pai (William Thomas Bishop)  quando ainda era um bebê, por insuficiência renal e de sua mãe (Gertrude), que foi internada em uma clínica psiquiátrica quando ainda era criança, quem nunca mais voltou a ver depois disso.  Viveu com diversos familiares, mas pareceu nunca superar o seu passado. Em determinado momento de sua vida, compartilhou com seu amigo poeta Robert Lowell que se sentia a pessoa mais solitária do mundo. Formou-se em literatura inglesa na Vassar College em Poughkeepsie. Nunca teve necessidade de trabalhar diante da bela herança deixada por seu pai.

Diante de toda essa beleza artística que humildemente aqui apresentei, fico me perguntando sobre o lugar da perda, da solidão e do sofrimento neste mundo, já que, quando no corpo e nas mãos certas, nos oferece uma arte maravilhosa em troca. Essa vida é mesmo muito contraditória, pois não é a feiura da tristeza a mãe de todos esses filmes e escritos que aos meus olhos são tão belos?

Pois não seria a vida a grande arte da perda, afinal? A arte da despedida: da mamadeira a um irmão, da faculdade a um emprego, dos amigos que mais amamos à qualquer experiência por mais breve e significativa que seja deixada para trás?

Termino estes relatos com a linda poesia de Bishop:

“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala
subseqüente
da viagem não feita.
Nada disso
é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem
quero
lembrar a perda de três casas
excelentes.
A arte de perder não é nenhum
mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um
império
que era meu, dois rios, e mais um
continente.
Tenho saudade deles. Mas não é
nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso
etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é
evidente
que a arte de perder não chega a ser
mistério
por muito que pareça (Escreve!)
muito sério”

(Uma Arte – Tradução Paulo Henriques Britto)

Obs: Existe outra bela tradução desta poesia de Horácio Costa (vale a pena conferir!).

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