A Viagem do Elefante, José e Pilar, José Saramago, Pequenas Memórias

Tudo Pode Ser Contado de Outra Maneira

Todos os dias me convenço um pouco da contingência do universo. Ontem mesmo me falaram do documentário “José e Pilar” e eis que ligo a televisão hoje e ele está passando no Canal Brasil para a minha alegria.

Numa sutileza tocante e deliciosa, este filme relata um pouco da vida do escritor português José Saramago e da sua relação com a sua esposa Pilar del Rio. A película é dirigida por Miguel Gonçalves Mendes.

josé e pilarJosé de Sousa Saramago nasceu numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, situada na província do Ribatejo, a cerca de 100 quilômetros de Lisboa. Filho de José Sousa e Maria da Piedade, não herdou o nome idêntico ao do pai, pois o funcionário do registro público adicionou, por iniciativa própria, o nome Saramago ao seu documento, apelido pelo qual a família de seu pai era conhecida na região.

Saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas serviam de alimento aos pobres. Feliz foi este acaso, pois imaginem o nosso José sem o Saramago?

Em 1924, mudou-se com a família para Lisboa, onde iniciou os seus estudos e, posteriormente, por motivos financeiros, teve que abandonar o liceu para entrar em uma escola de ensino profissional, onde aprendeu o ofício de serralheiro mecânico.

Na grade escolar havia, surpreendentemente como Saramago mesmo coloca, a disciplina de literatura. Assim começou a sua saga, ou devo dizer missão neste mundo, pois foram os livros escolares de Literatura que lhe introduziram à fruição literária.

José só teve o seu primeiro livro próprio, comprado por ele com dinheiro emprestado de um amigo, aos 19 anos. Depois de formado, trabalhou como serralheiro mecânico em uma oficina e nessa época conta que começou a frequentar a biblioteca pública de Lisboa. Foi assim que se apurou, na solidão maravilhosa da curiosidade, o seu gosto pela leitura.

Do seu primeiro casamento com Ilda Reis, teve uma única filha chamada Violante. Na época de seu nascimento, publicou alguns livros (Terra do Pecado, Clarabóia), mas, depois disso, durante 19 anos se absteve do mundo literário, quando, segundo o autor, pouquíssimos devem ter sentido a sua falta (duvido).

pilarDepois disso, trabalhou em uma editora, como crítico literário e tradutor, até que decidiu se dedicar inteiramente à literatura, essa caso de amor sem retorno. Em 1986 conheceu a jornalista Pilar del Río, com quem se casou em 1988.

Em 1995 ganhou o Prêmio Camões e em 1998 o Prêmio Nobel da Literatura. Dentre as suas publicações neste período, destaco o famoso “Ensaio Sobre a Cegueira” e o “O Conto da Ilha Desconhecida”.

José se descreve como um senhor calado, melancólico e um pouco triste. Mas isso não sei. No filme é possível observar a sua simplicidade e capacidade única de interpretar o mundo, que encanta a todos facilmente, com seu jeito doce e inteligente de falar.

Diz não acreditar em Deus e não temer a morte. Depois que tudo acabar, o universo jamais saberá que Homero escreveu Ilíada, diz. Desabafa no filme que, com mais de oitenta anos, acredita que chegou a hora de pensar no futuro e fala:

“Sinto como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente seja isso a velhice.”elefante

Na época em que o documentário foi filmado, o autor escrevia o livro “A Viagem do Elefante”, o que me tocou particularmente, pois este foi o último dos seus livros que li. Recorri às palavras que havia escrito após esta leitura, feita em 2012, para me lembrar do que havia sentido e pensado ao final da aventura que foi acompanhar o elefante Salomão em uma grande viagem entre Portugal e a Áustria.

A história do livro é baseada em fato verdadeiro que aconteceu no século XVI, quando Dom João III, rei de Portugal e Algarves, oferece ao arquiduque austríaco Maximiliano II, então regente da Espanha, um elefante de presente. O livro relata a viagem deste animal exótico para época (daí o motivo do presente), entre Lisboa a Viena.

Não deixei de idolatrar, mais uma vez, o escritor na sua ironia e sutileza em demonstrar as incoerências e a hipocrisia humana. Sempre através de temas criativos e universais.

“Sempre chegamos ao sítio onde as coisas nos esperam”, uma das frases do livro.

O filme trata também do livro “Pequenas Memórias”, que é definido pelo autor como a memória que tem dpequenase si mesmo. No mesmo conta as suas lembranças de menino, da aldeia Azinhaga onde veio ao mundo, as oliveiras, os avós maternos Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha e todas as outras coisas, tão sutis ao olhar estranho e tão familiares àquele que lembra, que compõe com uma precisão incerta a infância, seus cheiros, suas alegrias e medos, que se traduzem em um sentimento de liberdade única.

Segue um trecho do livro que adoro, quando Saramago se recorda da paisagem da aldeia onde nasceu, que lhe remete a vastas lembranças:

“Não falta quem afirme seriamente, com o reforço abonatório de alguma citação clássica, que a paisagem é um estado de alma, o que, posto em palavras comuns, quererá dizer que a impressão causada pela contemplação de uma paisagem sempre estará dependente das variações temperamentais e do humor jovial ou atrabilioso que estiverem actuando dentro de nós no preciso momento em que a tivermos diante dos olhos”.

Por ironia ou não, Saramago nasceu em 1922, o mesmo ano que meu falecido avô materno. Por coincidência ou não, minha mãe sempre teve uma admiração e paixão por ambos. Lembro-me bem que, no dia 19 de Junho de 2010, deparei-me com a minha mãe sentada junto da mesa da cozinha com um jornal aberto, lendo uma longa reportagem sobre Saramago, homenagem a sua morte que acontecera no dia anterior.

Observei seus olhos marejados e o seu silencioso sofrimento por esta perda inexplicável. Durante aquele momento triste e de carinho e admiração pela beleza da vida, o telefone tocou. Era uma tia que apresentava os seus sentimentos à minha mãe pela perda de seu ídolo, alguém que nunca havia visto pessoalmente. Não é fácil explicar aquelas coisas que só existem dentro de nós.

Outro dia alguém me falou que o conhecimento e a literatura só deveriam existir para o bem, de nada adianta saber mais que os mestres, conhecer os clássicos e o mundo, se não for para melhorar o ser humano, compartilhar conhecimento e afeto. Concordei. Veja a imensidão da literatura, que é capaz de motivar uma simples ligação telefônica, grandiosa na sua capacidade de fortalecer laços e eternizar lembranças.

José Saramago será sempre eterno para mim, seja no seu documentário, seja em todos os seus livros espalhados pela extensa biblioteca da minha casa, seja na minha própria mãe, quem me deixa este legado, de certa forma aqui relatado.

Saramago queria viver tudo de novo, exatamente como a viveu. O que queria mais? Tempo e vida. Nós também queríamos mais tempo com você, e quem sabe teremos, afinal “tudo pode ser contado de outra maneira”.

fIM

Padrão